Drogas, anúncios ou pornografia na web fornecem um “gatilho”? Saiba o que isso significa

Andrea Piacquadio / Pexels

Anos atrás, eu estava dando uma aula de psicopatia quando tive que entrar nos detalhes de um caso de anorexia que incluía os efeitos laxativos a longo prazo da deficiência de nutrientes e descompensação bulímica. Então a aluna levantou a mão e comentou: “Professor, você não deve falar sobre isso sem aviso prévio, porque está ativado”. Levei alguns momentos para entender o significado da palavra “gatilho” nesse contexto. Após algum trabalho de análise da fala, o seguinte movimento foi esclarecido:

  1. O termo “gatilho” apareceu no cenário psicológico brasileiro da década de 1990, quando o surgimento do HIV-AIDS intensificou as campanhas contra o uso de drogas, principalmente o uso de drogas injetáveis. No processo de cessação do uso, seria muito importante localizar e afastar-se das circunstâncias favoráveis ​​ao uso – por exemplo, certo ambiente, certos amigos, certas situações de ansiedade ou desconforto – que poderiam criar “gatilhos” que desencadeariam recaídas para todos, Afaste-se do gatilho. Esta foi uma recomendação para aqueles que foram excessivamente expostos a vícios, impulsos e distúrbios compulsivos.
  2. Nos anos 2000, o “gatilho” foi associado a uma grande metáfora provocada pelos antidepressivos. Segundo ela, a depressão é causada por um desequilíbrio de serotonina, dopamina ou adrenalina no cérebro. O desequilíbrio desses neurotransmissores tem uma causa genética e não depende do nosso estilo de vida e são indiferentes à maneira como falamos, trabalhamos ou queremos. Mas a depressão é desencadeada por certos estímulos desfavoráveis ​​do ambiente, geralmente ansiosos ou estressantes.
    A imagem é perfeita para quem pensa que o gatilho faz parte de uma arma, como um revólver, que dispara, quem sabe quem, desde que algo ou alguém puxe o gatilho. Após o aperto, não há muito, temos apenas um círculo de ações mecânicas que vão desde a liberação do cão (a parte de trás da arma), atingindo o pavio, explodindo no tambor e jogando a bala no cano. Em outras palavras, há apenas um momento em que podemos realmente fazer algo, e isso envolve descobrir o que ativa cada pessoa.

De acordo com Orlando Coser [1], na trilha de Susan Sontag [2], as doenças requerem metáforas que tornam explicações científicas acessíveis e relacionadas às narrativas cotidianas. Considere, por exemplo, o uso atual das palavras “combater o câncer até o fim” ou “guerra contra as curvas transformadas em outra vítima”.

Nada é mais antigo e hipócrita do que pensar na doença como um análogo da guerra: é causada por um inimigo invasor, que enfraquece a unidade e a funcionalidade de nossos corpos, requer a mobilização de unidades de defesa imunológica (anticorpos) e conflitos para expulsar um alienígena. que tomaram conta de nosso corpo.

Imagine agora aqueles que “perderam” a guerra, que não foram “suficientemente corajosos”? As metáforas sempre têm um significado mais extenso ou menos intenso do que o que metaforizam.

  1. Em 2010 Internet tornou-se um instrumento sem precedentes de alcance e comunicação entre os brasileiros. Com ele, foi aberto um campo para a publicação de imagens de todos os tipos, muitos dos quais de todas as formas incluíam violência, erotismo e estranheza. Ao mesmo tempo, metáforas cerebrais começaram a ser exportadas para todas as partes do mundo [3] como uma condição básica de nossa auto-interpretação como uma cultura deprimida.
    Se considerarmos que os “gatilhos” fizeram parte de nossa narrativa básica de saúde mental nas últimas duas décadas, nada é mais óbvio do que usar “gatilhos” como uma maneira de chamar a atenção das pessoas, afinal, era exatamente esse tipo de estímulo contra o qual deveriam ser. prepare e avise. Mas, neste ponto, já cruzamos outro Rubicão em termos de saúde mental, que diz que todas as formas de contradição, contradição e conflito devem ser evitadas como forma de promover a saúde mental. Este é um princípio completamente falso e é contrário à ideia original do “gatilho”.
    Desde então, tornou-se evidente que existe uma responsabilidade “social” daqueles que enviam mensagens que podem criar conflito.
  2. Na década de 2020, o uso de “gatilhos” também se tornou uma ferramenta de marketing uma estratégia para aumentar o alcance e a visibilidade de qualquer postagem, Um tipo de regulamento para o consumidor digital e a moralidade com base no consentimento prévio foi elaborado. Ligada à prática do “selamento” e à cultura do cancelamento, essa moralidade baseia-se no direito de restrição: “saia porque é ativado”.
    O gatilho deixou de ser a força motriz da psicopatologia para se tornar sinônimo de “criou reações que eu não previa quando clicava”. Ele mescla pornografia e violência com tudo o que eu fui “exposto” sem aviso prévio ou o consentimento declarado que eu queria receber.
    Por outro lado, os gatilhos também são entendidos como gatilhos de reações, incluindo reações de compra e engajamento. Existem gatilhos que enfatizam:
    Escassez (“compre ‘djá’ caso contrário ele terminará”);
    Urgência (“chegou na segunda-feira branca”);
    Novidade (“novo gozofon lançado”);
    Prova social (“boomer também”);
    Sob autoridade (“segundo a Universidade de Olavo de Carvalho, o gatilho sempre reina”);
    Reciprocidade (“experimente este jogo que não deixará seu computador livre por 15 dias”):
    Causalidade (“participe deste movimento para o fim do movimento”):
    Antecipação (“início do século”);
    Simplicidade (“você nem notará como ele corta um cartão de crédito”):
    E o cálculo do gozo (“agora amplie seu pênis”).
    Um autor como Augusto Cury, completamente inapropriado do ponto de vista de teorias psicológicas sérias, vende milhões de livros ensinando como fechar “janelas assassinas” e evite gatilhos ruins para sua vida mental.

Assim, generalizada e generalizada, a noção de gatilho abordará curiosamente qualquer coisa e tudo que adquira certa reatividade em nossos complexos psíquicos.

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O tópico foi a aproximação entre Freud e Jung nos anos 1900-1910, e incluiu estudos experimentais sobre tempo de reação, choque e hiperação associados a uma palavra específica. A idéia do complexo, proposta por Jung, significava apenas a tendência de alguém reagir de maneira “desviante” ou “tendenciosa” em relação a um tópico em particular.

Complexos “, como Édipo e os pais (que conectam pai e mãe na mesma imagem), ou complexos de intrusão e subtração, nada mais são do que a capacidade que algumas palavras (Lacan chama significantes)) devem atrair outras palavras. , como uma corrente repetida.

Nas décadas de 1940 e 1950, o Conceito foi comparado ao desenvolvimento de testes projetivos, inspirados na psicanálise, como Rorschach e o Thematic Aperception Test (TAT). Eles têm certas reações às imagens mostradas, como choque dissociativo, que geralmente indicam distúrbios mais graves.

O problema com termos mais antigos, como “inconsciente”, “trauma” e “complexo”, é que eles se integraram tanto à nossa cultura que produzem um tipo de falso entendimento naturalizado. Isso aconteceu com um dos primeiros processos de “condução” descobertos na história da psicologia, chamado de “ataque histérico”, por Janet, Charcot e Freud. Mas, diferentemente de “gatilho”, que soa como uma palavra moderna, séria e prestigiada, “histérica” ​​tornou-se uma palavra antiga e incomum e está associada a “algo que não existe é pura pretensão, porque sua natureza é histérica”.

Observe que o uso da palavra “histeria”, que muitas vezes desqualifica uma maneira de reprimir ou desqualificar uma forma de sofrimento, está historicamente associado às mulheres. Acontece que o ataque histérico é precisamente a síndrome psicomotora, que envolve alterações na consciência, causadas por um marcador específico, associado a um complexo patogênico do sujeito, causando reações dissociativas e de despersonalização (semi-voluntárias).

Também não é coincidência que a maioria dos “gatilhos” esteja precisamente relacionada a duas experiências, estudadas por Freud, como o valor etiológico da gênese dos sintomas neuróticos: sexualidade e violência. Agora pense no revólver e como a sexualidade “desencadeia” processos descontrolados e, ao mesmo tempo, chama violência na representação social.

Os “gatilhos” devem ser conhecidos e respeitados por todos nós, mas acontece que sua natureza única é tal que qualquer significante pode se tornar um “gatilho”, tornando impossível a prevenção genérica contra eles. Por outro lado, invocar “gatilhos” pode ser uma reação e um aviso difuso contra o excesso de pornografia e violência, presente na web. Uma maneira de combater a crescente falta de educação e respeito nas trocas discursivas, muitas vezes mediadas por pseudônimos de álibi irresponsáveis.

Entre uma posição e outra, gosto de me lembrar sempre de jovem pai e decidi levar meu filho e sobrinho para ter contato direto com a alta cultura em exposição no Museu de Arte de São Paulo, Masp. Tentando salvá-los de coisas insignificantes como “padrinhos”, “vaca e galinha” e “Johnny Bravo Eu tive que enfiar minha bolsa intelectual dentro da bolsa, apesar de suas observações curiosas e críticas, como: “Tio, por que essa mulher nua está indo para lá naquele caldeirão quente cheio de demônios?

A cultura é um risco. Quem quer uma vida livre de riscos retorna aos padrinhos. Mas mesmo assim, acho que aqueles santos na exposição masoquista erótica, aqueles famintos por retiros e aquelas cenas de guerra detonaram algum “gatilho” em suas cabeças.

REFERÊNCIAS

[1] COSER, Orlando (2010) As metáforas farmacoquímicas com as quais vivemosRio de Janeiro: Garamont.

[2] SONTAG, Susan (1984) Doença como metáfora, Traduzido por Márcio Ramalho. Rio de Janeiro: Gral, 1984.

[3] Watters, Eaton (2010) Loucos como nós: a globalização da psique americana, Nova York: Simon & Schuster, Inc.

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